sábado, junho 30, 2012

Fadiga


Estou cansada, tão cansada,
estou tão cansada! Que fiz eu?
Estive embalando, noite e dia,
um coração que não dormia
desde que o seu amor morreu.

Eu lhe dizia: ''Deixa a morte
levar teu amor! Não faz mal.
É mais belo esse heroísmo triste
de amar uma coisa que existe
só para morrer, afinal!...

Deixa a morte... Não chores... dorme!''
Noite e dia eu cantava assim.
Mas o coração não falava:
chorava baixinho, chorava,
mesmo como dentro de mim.

Era um coração de incertezas.
feito para não ser feliz;
querendo sempre mais que a vida
— sem termo, limite, medida.
como poucas vezes se quis.

O tempo era ríspido e amargo.
Vinha um negro vento do mar.
Tudo gritava, noite e dia
— e nunca ninguém ouviria
aquele coração chorar.

Uma noite, dentro da sombra,
dentro do choro, a sua voz
disse uma coisa inesperada,
que logo correu, derramada
num silêncio fino e veloz.

''Meu amor não morreu: perdeu-se.
Ele existe. eu não o quero mais.''
O choro foi levando o resto.
Eu nem pude fazer um gesto,
e achei as horas desiguais.

E achei que o vento era mais forte,
que o frio causava aflição;
quis cantar, mas não foi preciso.
E o ar estava muito indeciso
para dar vida a uma canção.

A sorte virara no tempo
como um navio sobre o mar.
O choro parou pela treva.
E agora não sei quem me leva
daqui para qualquer lugar,

onde eu não escute mais nada,
onde eu não saiba de ninguém.
onde deite a minha fadiga
e onde murmure uma cantiga
para ver se durmo, também.


Fragmento: Viagem & Vaga Música — Cecília Meireles

sábado, junho 23, 2012

É estranho


É estranho que, após o pranto
vertido em rios sobre os mares,
venha pousar-te no ombro
o pássaro das ilhas, ó náufrago.

É estranho que, depois das trevas
semeadas por sobre as valas,
teus sentidos se adelgacem
diante das clareiras, ó cego.

É estranho que, depois de morto,
rompidos os esteios da alma
e descaminhado o corpo,
homem, tenhas reino mais alto.


Fragmento: Flor da Morte — Henriqueta Lisboa

terça-feira, junho 19, 2012

Pra ganhar um arco-íris

Para Paulo Carvalho (Pretty), por mais um ano.
De lucas repetto.

O médico franze o cenho
e em voz baixa, num cochicho,
diz é coisa grave,
pode morrer.

A casa emudece. Pétalas
tombam do vaso, na toalha.
A mãe de Lico chora, chora
e depois se cala.

O pai se levanta
e parte, após muita espera.
E volta tarde, bem tarde:
arrasta um arco-íris
de primavera.
— Pra ti, guri.

E Lico sara,
abre um sorriso
está feliz, bem se vê,
e eu imagino um jeito
de adoecer.


Fragmento: Restos de arco-íris — Sérgio Caparelli