segunda-feira, abril 30, 2012

Mocidade


Para Bruna Gabriela, por mais um ano.
De lucas repetto.


A mocidade esplêndida, vibrante,
Ardente, extraordinária, audaciosa,
Que vê num cardo a folha duma rosa,
Na gota de água o brilho dum diamante;

Essa que fez de mim Judeu Errante
Do espírito, a torrente caudalosa,
Dos vendavais irmã tempestuosa,
— Trago-a em mim vermelha, triunfante!

No meu sangue rubis correm dispersos:
— Chamas subindo ao alto nos meus versos,
Papoilas nos meus lábios a florir!

Ama-me doida, estonteadoramente,
Ó meu Amor! que o coração da gente
É tão pequeno... e a vida, água a fugir...


Fragmento: Poemas de Florbela Espanca — Charneca em flor

XIX


Circularidade
 

Para Fernando Costa, por mais um ano.
De lucas repetto


NO ENTANTO, AS SEREIAS POSSUEM UMA ARMA MUITO MAIS TERRÍVEL QUE O CANTO: SEU SILÊNCIO. (FRANZ KAFKA)

Mil homens explodem no centro do coração de sua cidade ou amanhecem sob as toneladas de escombro da alta torre ou são a medida exata nos alvos de uma ogiva inteligente – ou uma mulher apenas e um homem apenas, ofertam a vida entre si, entregando-a ao outro em sacrifício para fazer mais leve ainda a verdade do amor.

Os mil homens – de igual maneira que esse solitário coração par – não deixam o mundo ao mesmo tempo, na sincronicidade de um instante: cada um parte em seu momento e chega por sua vez à mesma direção final – numa assincronia última do simultâneo.

Embora a morte pareça seguir seu caminho único ao longo de um túnel, que vai se tornando poço, um homem leva em si um círculo sem fechar (tempo próprio de seu tempo) e ao encontrarem-se suas linhas nesse extremo onde se entrelaçam vida-morte e morte-vida, descobre um imã no poderoso canto de seu Anjo-Sereia.

Escuta a voz de tua Sereia
Decifra os silêncios de teu Anjo


Fragmento: eXpírito multiversos — Rubén Mejía
Tradução: Floriano Martins

quinta-feira, abril 26, 2012

Sonhos — Por Sadhu Arunachala (Major Alan Chadwick)


“Somos feitos da mesma coisa que os sonhos e nossa curta vida é rodeada por um sono.” (Shakespeare)

Shakespeare realmente sabia sobre o que estava falando e isto não era somente efervescência poética. Maharishi costumava dizer exatamente a mesma coisa.

Suponho que eu tenha questionado Bhagavan sobre esse assunto com mais frequência do que outros, apesar de algumas dúvidas sempre permanecerem para mim. Ele sempre avisou que assim que uma dúvida fosse esclarecida, outra surgiria no lugar da primeira, num processo sem fim.

“Mas Baghavan”, eu repetia, “sonhos são desconexos, enquanto que o estar acordado continua de onde havia parado e é tido por todos como algo contínuo”.

“Você diz isso nos seus sonhos?” Bhagavan perguntava. “Eles pareciam perfeitamente consistentes e reais enquanto aconteciam. Somente agora, enquanto acordado, é que você questiona a realidade da experiência. Isso não tem lógica.”

Bhagavan se recusava a ver a menor diferença entre os dois estados, e nisso ele concordava com todos os grandes Videntes Advaitas. Alguns questionaram se Sankara não teria traçado uma linha de diferença entre esses dois estados, mas Bhagavan persistentemente negava isso. “Sankara só fez essa divisão aparente para o propósito de uma exposição mais clara”, Maharishi explicava.

Mesmo que eu tentasse alterar meu modo de perguntar, a resposta que eu recebia era sempre a mesma:

“Coloque suas dúvidas dentro do próprio sonho. Você não questiona o estar acordado quando você está acordado – você o aceita. E o aceita da mesma maneira que você aceita os seus sonhos. Vá além desses dois estados, e do terceiro – o sono profundo. Estude-os a partir daquele ponto de vista. Você está estudando uma limitação do ponto de vista de outra limitação. Poderia algo ser mais absurdo? Vá além de todas as limitações, e então volte com suas dúvidas.”

Apesar disso, as dúvidas ainda permaneciam. De algum jeito, eu sentia, enquanto sonhava, que havia algo de irreal nos sonhos; não era sempre, mas alguns lampejos vez ou outra.

“Isso também não vive acontecendo com você enquanto você está acordado?” Bhagavan perguntava. “Às vezes você não sente que o mundo em que você vive e as coisas que estão acontecendo não são reais?”

Mais uma vez, apesar de tudo isso, a dúvida persistia.

Porém, em uma manhã, me aproximei do Bhagavan e, para seu encantamento, entreguei-lhe um papel, onde estava escrito o seguinte:

“Bhagavan se lembra que eu expressei minhas dúvidas sobre a semelhança entre o sonhar e o estar acordado. Na manhã de hoje, a maior parte dessas dúvidas foram esclarecidas pelo seguinte sonho, que me pareceu particularmente objetivo e real:

Eu estava discutindo filosofia com alguém e pontuei que todas as experiências eram subjetivas, e que não havia nada além da mente. A outra pessoa negava, mostrando o quão sólidas as coisas eram e quão reais as experiências pareciam, e que isso não poderia ser somente imaginação.

Eu respondia: “Não, isso tudo não é mais do que um sonho. Sonhar e estar acordado são exatamente a mesma coisa.”

‘Você diz isso agora’, ele respondeu, ‘mas você nunca diria uma coisa dessas no seu sonho.’

E então, eu acordei.”

De “Call Divine”, Março de 1954
(Tradução livre: Dênis Elias)

terça-feira, abril 24, 2012

Auto-Retrato


Toda uma vida em mil sonetos...
Mais hum pra ser exata em minhas contas.
Posso me orgulhar dos meus quartetos
E algumas chaves, se o ouro me descontas

Se não cheguem a ser fechos dourados,

Também algumas pobres rimas falsas
Sem contar os lamentáveis pés quebrados
Com que tenho dançado algumas valsas.

No final, o conjunto é até bem posto

Conquanto discutível no detalhe
E mesmo anacrônico no gosto.

Mas quê importa? Cantei-me para mim,

É risível, eu sei, nem bem me calhe
Sincero auto-retrato, tanto assim...


Fragmento: Alma Welt

sábado, abril 21, 2012

Ao mesmo tempo...

Para Jefferson Reis
pela nossa vontade de sentir o abraço da tempestade.
De lucas repetto.



Ao mesmo tempo que eu apreciava a tempestade, tão bela e terrível, caminhava a passos largos. Essa nobre guerra celestial elevava o meu espírito; apertando as mãos, eu exclamava em voz alta:
— William, anjo querido! Este é o teu funeral, o teu réquiem!

Fragmento: Frankenstein — Mary Shelley
Tradução: Miécio de Araujo Jorge Honkins

quinta-feira, abril 19, 2012

Ser como o dia

Para Deise, por mais um ano.
De lucas repetto.

Ser como o dia
que amanhece
anunciando novas esperanças
novas alegrias,
no cantar dos pássaros,
no calor do sol,
no riso das crianças.

Ser como o dia
que ao cair da tarde,
se espatifa
numa explosão silenciosa
de cores.

Ser como o dia
que, ao final, se agasalha
na noite silenciosa,
tranquila,
repousante.

Ser como o dia,
na certeza de que amanhã renascerá
anunciando novas esperanças
e novas alegrias,
no cantar dos pássaros,
no calor do sol,
no riso das crianças...


Fragmento: Diversos Versos — Almir Paula Lima

Desaponto


Manter perene toda esta alegria,
Querer eternizar este momento,
Desejar que as estrelas não se apaguem
Jamais deixar de ver a luz do dia;

Beber em haustos longos as manhãs
Cheias do riso alegre das crianças,
Límpidas, luminosas, sempre belas,
Renovar as sonhadas esperanças;

Sentir bem forte o impacto da vida,
Palpável, quase, em toda a sua essência,
Até doerem ossos, carne, alma,
Num apego sem fim à existência;

E de repente, perceber, num choque,
Que nossos sonhos são, assim, tão grandes,
Que nossa vida é, assim tão curta...


Fragmento: Diversos Versos — Almir Paula Lima

terça-feira, abril 17, 2012

A um livro

No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
É uma sombra triste que ando a ler
No livro cheio de mágoa que me deste!

Estranho livro aquele igual a mim!
Cheira a mortos a rir e a cantar...
É dum branco sinistro de jasmim,
Que só me dá vontade de chorar!

Parece que folheio toda a minh’alma!
O livro que me deste, em mim salma
As orações que choro e rio e canto!

Poeta igual a mim, ai que me dera
Dizer o que tu dizes! Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto!


Fragmento: Poemas de Florbela Espanca — Trocando Olhares

sábado, abril 14, 2012

— O Anjo...

— O Anjo escreve em seu livro da vida costurando-o com uma agulha de osso, agulha essa de um passado desconhecido, de memórias apagadas. Para a costura e vida dessas letras, passava pelo minúsculo furo da agulha linhas de sentimentos que pareciam veias secas. Decidiu então pegar essa agulha e mergulhar no nanquim, seu sangue negro, começou assim a tatuar em seu próprio corpo ao alcance da hipoderme um Dragão, para que os rastros da essência dos riscos não de perdessem.


Fragmento: Angelus — (2012, póstumo)

quinta-feira, abril 12, 2012

Em vão

Passo triste na vida e triste sou
Um pobre a quem jamais quiseram bem!
Um caminhante exausto que passou,
Que não diz onde vai nem donde vem.

Ah! Sem piedade, a rir, tanto desdém
A flor da minha boca desdenhou!
Solitário convento onde ninguém
A silenciosa cela procurou!

E eu quero bem a tudo, a toda a gente!...
Ando a amar assim, perdidamente,
A acalentar o mundo nos meus braços!

E tem passado, em vão, a mocidade
Sem que no meu caminho uma saudade
Abra em flores a sombra dos meus passos!


Fragmento: Poemas de Florbela Espanca — Reliquiae (1931, póstuma)

terça-feira, abril 10, 2012

O mistério


Na morte, não. Na vida.
Está na vida o mistério.
Em cada afirmação ou
abstinência.
Na malícia
das plausíveis revelações,
no suborno
das silenciosas palavras.

Tu que estás morto
esgotaste o mistério.

Ora a distância perseguias,
ora recuavas.
Era apogeu ou o nirvana
que tateando buscavas?

Ah! Talvez fosse a morte.

Não se sabia quando vinhas
nem quando partias. Eras
o Esperado e o Inesperado.

Grandes navios viajavas
com a mesma estranha gratuidade
com que ao planalto descias
por uma escada de nuvens.
Belo de inconstância e arrojo
com teu lastro de intuições,
a um apelo da noite
todo te entregavas, trêmulo
entre carícias e tempestades.

Que mundo vinha nascendo?

Ah! Talvez fosse a morte.

Conheceste os suspiros,
o lento disfarce do sangue,
as rosas do espírito, as secas
rosas nos dedos trituradas.

Por uma solução ansiavas...

Ah! Talvez fosse a morte.

Agora estás poderoso
de indiferença, de equilíbrio.
Completo em ti mesmo, forro
de seduções e amarras.
Nada te açula ou tolhe.
És todo és um, apenas.
A plenitude da água,
da pedra, tens.
E és natural, és puro, és simples como
a água, a pedra.


Fragmento: Flor da Morte — Henriqueta Lisboa

domingo, abril 08, 2012

Paraíso


Será que Deus
Mora num sítio no céu?
Será que Ele
Ordenha nuvens pra chover?
A grama lá é toda azul?
Estrela é fruta de comer?

Será que Ele
Tem televisão?

Eu acho que não.

Eu acho
Que o sol
É o seu fogão.
E a lua,
Seu lampião.


Fragmento: Coleção Itaú de Livros Infantis
Bem-te-vi e outras poesias — Lalau e Laurabeatriz

VII


O efeito poessível


Pode o bater de asas de uma borboleta no Brasil desencadear um tornado no Texas? 
Edward Lorenz, 1961


Se as asas desta borboleta
— segundo a teoria do caos —
provocam que a terra
se abra em duas
                           e se torne inferno
no outro lado do mundo,

o que ocasiona o traço de uma
dezena de linhas, o vôo breve
de um poema, a queda em sombra
de uma folha?

                       podem criar
um abismo ao contrário, outra letra
na escritura do universo,
minha tatuagem sob tua pele,
um bosque com doze versos?

Qual é o efeito de um instante intenso e amoroso?



Fragmento: eXpírito multiversos — Rubén Mejía
Tradução: Floriano Martins

sexta-feira, abril 06, 2012

Loja de antiguidades


Existe em ti e em mim
essa nostalgia que nos faz andar
perdidos na poeira ambígua
dos recados do tempo.
O teu olhar demora-se nas lâmpadas
bordadas: Gallé, esse velho artesão,
sabia o que fazia.
E as unhas nacaradas da mulher
expõem o objeto carregado de beleza
sobre uma alma esteta
que tanto trabalho lhe deu a transformar.
Reparem nesta peça – e a sua garganta
ressoa a arte nova, imperiosa.
Buscamos no vivido um óleo
intransmissível
para os nossos corpos.
Silenciosamente andamos nessa gruta
dentro da cidade onde os ruídos caem
como lanças bárbaras
e a luz fria da noite
estilhaça a nossa vista.
É bom pousar assim tanta memória
nas mãos férteis e frágeis
das coisas esquecidas.
Mas à saída, justamente à porta,
as mãos de outra mulher, meticulosas,
rebuscavam no chão, entre outras peças,
outras coisas vividas, esquecidas,
enfim, outros destroços:
do fascínio da carne, os pedacinhos de ossos.


Fragmento: Armas Brancas e outros poemas — Armando Silva Carvalho

domingo, abril 01, 2012

Meia hora depois, tomei-lhe...



Meia hora depois, tomei-lhe a mão com sangue frio e disse-lhe no ouvido:

— Vossas armas, senhor?
— Saber-las-eis no lugar.
— Vossas testemunhas?
— À noite e minhas armas.
— A hora?
— Já.
— O lugar?
— Vireis comigo... Onde pararmos aí será o lugar...
— Bem, muito bem: estou pronto, vamos.



Fragmento: Noite na Taverna – Álvares de Azevedo